POR SANDRA WERNECK E GISELA CAMARA
As meninas e o Brasil - Gênese e contexto do filme
Sandra: “Quando o Lula foi eleito, eu acabava de fazer Cazuza O Tempo não Pára e, como tanta gente, achei que era a hora de tocar projetos de caráter social no Brasil. Foi quando tive vontade de voltar ao documentário, onde comecei minha carreira. Entre os muitos temas que gostaria de ver tratados, escolhi o da gravidez adolescente. Eu sempre me interessei pela infância e a adolescência, o que está claro nos meus filmes.
Nos documentários, eu já havia enfocado temas como a prostituição infantil em Damas da Noite, o trabalho infantil em Profissão: Criança, o cárcere feminino em Pena Prisão e a infância marginalizada em A Guerra dos Meninos. Acho que todos esses fenômenos começam na criança que nasce sem uma família estruturada que a eduque. MENINAS enfoca três casos particulares, mas que ajudam a compreender um quadro mais geral.
O universo que conheci ao acompanhar a trajetória dessas meninas, durante um ano, foi profundamente revelador: elas quase não vivem suas infâncias, desde cedo assumindo o compromisso de cuidar dos irmãos mais novos e de suas casas. Acabam por confundir maternidade com maturidade, na expectativa de que o novo status de mãe signifique um reconhecimento na comunidade e na família.
O período da gestação - em que a espera é a única grande aliada - coincide com o fim de seus sonhos infantis.
O solo deste filme é delicado: meninas esperando filhos, brincando de bonecas. Mas o subsolo é trágico: o quadro habitual no Brasil é o da menina que engravida, geralmente despreparada, abandona a escola e reduz suas perspectivas de vida. O novo pai, por sua vez, segue em frente, engravida outra menina, que vai ficar sozinha também. A primeira acaba se juntando a outro rapaz, que a engravida de novo e também a deixa sozinha... O resultado são todas essas casas cheias de mulheres e seus filhos, sem a presença da figura paterna.
Contra isso não basta distribuir camisinhas. O Brasil precisa pensar na questão do planejamento familiar. É uma loucura botar cinco ou dez filhos no mundo sem ter condições de criá-los e educá-los de verdade. Para além de qualquer 8 plano assistencialista, é preciso cuidar seriamente da educação, a começar pelas futuras mães. É preciso mostrar-lhes o que significa ser mãe. Para muitas, ter filhos é simples questão de status ou a realização de um sonho vago que não sabem exatamente o que é.
Eu espero que este filme, além de um documentário interessante do ponto de vista cinematográfico, seja um instrumento de reflexão para a sociedade. Quero que, além de chegar às salas de cinemas, ele possa servir ao debate dessas questões.”
Gisela: “Montamos uma extensa rede de pesquisa e consultas a instituições e especialistas relacionados à gravidez na adolescência. Concluímos que, na faixa etária entre 10 e 14 anos, a incidência é maior nas famílias de baixa renda, como reflexo de uma falta de perspectiva de crescimento pessoal e profissional. Muitas dessas meninas alimentam seus sonhos, mas pressentem que não poderão realizá- los. A gravidez surge, então, como um atalho para a idade “adulta”, um ganho de responsabilidade e mesmo de algumas “vantagens”, como um quartinho só para si. Nas classes média e alta, as meninas geralmente têm outros horizontes e prioridades. Além disso, as estatísticas mostram que o índice de abortamento é menor nas famílias mais pobres – ou porque não têm dinheiro, ou porque são religiosos, ou simplesmente porque aceitam a gravidez com naturalidade. Por sua vez, os meninos costumam receber bem a notícia de que serão pais. Trata-se de uma afirmação visível de masculinidade. Eles curtem e, pelo menos no início, assumem o bebê e ajudam financeiramente quando podem, embora não dividam a responsabilidade de criá-los. Para eles, esta seria a “função da mulher”.
Semelhantes, diferentes - A escolha das personagens
Sandra: “Entrevistamos cerca de 110 meninas, não só no Rio, mas também em São Paulo, Pernambuco, Ceará, Paraíba e Minas Gerais. Conversamos com garotas de grandes cidades e de áreas rurais muito pobres. Verificamos que, no fundo, são todas muito parecidas, seja nos sonhos, nos dilemas ou no cotidiano. Acabamos optando pelo Rio para facilitar o acompanhamento extensivo durante um ano, tornando as personagens mais íntimas da equipe e da câmera.”
Gisela: “Para localizar nossas meninas, na faixa da chamada primeira adolescência (até 14 anos), houve um momento em que ligamos para todos os ginecologistas de um livro de plano de saúde do Rio de Janeiro. Escolhidas as garotas, a aproximação foi feita sempre através das mães, de maneira a obtermos o acordo de todos os envolvidos com o seu cotidiano.”
Sandra: “A Evelin nos foi indicada por uma rádio comunitária da Rocinha. Ela estava no início da gravidez e se prestava a um acompanhamento mais completo de todo o processo. A Luana foi escolhida principalmente por ser uma das poucas que afirmavam ter desejado a criança, em vez de ser apenas a agente passiva de um “acidente”. E também porque morava nessa casa só de mulheres. Já a Edilene trazia para o filme uma situação inusitada: sua mãe também estava grávida e seu namorado tinha engravidado uma vizinha no mesmo período. Havia ali um núcleo dramático completo, à espera de seus desdobramentos. É o que se vê no filme. O que nos pareceu muito rico é que essas personagens eram parecidas entre si na condição de adolescentes e na situação de espera, mas completamente singulares na maneira como foram criadas e na relação com os namorados.”
Filmar a espera
Gisela: “As filmagens aconteceram de novembro de 2004 a agosto de 2005. Sem risco de parecer ingênuas, nós queríamos que o filme tivesse o olhar das próprias garotas sobre a sua gravidez. Nossa observação era montada a partir de conversas a respeito do que estava acontecendo, do que sentiam ou julgavam importante. No começo, quase enlouquecemos porque, segundo elas, não acontecia rigorosamente nada. Ligávamos em dias alternados e nada havia para contar. Muitas vezes fui a suas casas apenas para conversar, sem filmar nada. Elas simplesmente viam televisão, cozinhavam, lavavam louça, brigavam com a irmã, conversavam no portão etc.
Percebemos então que o nosso relacionamento com as meninas seria a chave para transformarmos em imagens esse cotidiano de poucas atividades. Precisávamos de fato estar muito próximos delas, desenvolver uma intimidade que permitisse a Evelin, Edilene, Luana e Joice nos mostrar o que cada uma tinha de particular.”
Sandra: “Além de problemas naturais de articulação, as garotas tinham muita vergonha de expor o seu estado. Foi fundamental conquistar a confiança delas. Mas houve momentos em que pensamos que aquilo não daria filme. Até que finalmente compreendemos que o filme era justamente essa espera, o simples cotidiano. Isso tinha que ser impresso na película. Um filme sobre o essencial da vida e ao mesmo tempo sobre o nada.
A espera das meninas impôs a linguagem do filme. Durante a gestação do bebê não há clímax. Decidimos que a câmera seria sempre cúmplice, e que faria parte do cotidiano delas, sem invadir, documentando aquilo que nem sempre, aparentemente, teria importância. A câmera nunca se posicionava entre as meninas, mas em local destacado, deixando-as à vontade. Poucas vezes usamos tripé. Queria a respiração da câmera registrando a espera, o vazio, o que aparentemente era o “nada”, mas que, para um olhar mais atento, ajudava a explicar a escolha que nossas personagens fizeram.
Tentamos montar uma equipe técnica exclusivamente feminina, acreditando que isso ajudaria nosso método. Mas a Heloisa Passos, nossa fotógrafa, teve que se afastar para dirigir um projeto próprio e foi substituída sem problemas pelo Fred Rocha. Quando ele entrou, as meninas já estavam senhoras da situação.”
Gisela: “No nosso plano de trabalho, havia aqueles momentos fundamentais que deveríamos testemunhar: o pré- natal, o primeiro ultra-som, a descoberta do sexo do neném, o parto etc. Mas nem de longe queríamos fazer um tratado sobre gravidez. O que importava de fato era o cotidiano e suas eventuais surpresas. No trato com as meninas, sempre cuidávamos para que elas estivessem conscientes da diferença entre conversar informalmente com a equipe e falar “para a câmera”. Não pretendíamos confundi-las.”
Sandra: “Fizemos muitas tentativas com o procedimento do “cinema direto”, ou seja, filmar alguma coisa que acontece entre as pessoas, e não para a câmera. Mas isso não rendia muito, além de gerar constrangimento. Tivemos um bom momento na discussão entre Edilene e Alex à mesa, exatamente no período próximo ao parto dela, em que alugamos uma casa em Engenheiro Pedreira para ficar de tocaia, à espera do nascimento. Nesse período, fizemos um acompanhamento minucioso, da manhã à noite.
Os documentários da primeira fase da minha carreira me ajudaram muito a dirigir atores na ficção. O caminho inverso, no entanto, foi penoso. No retorno ao documentário, nada estava preparado, as coisas não aconteciam. Tive que desaprender tudo e voltar a depender do inesperado.
Uma coisa boa desse filme é que contamos com a presença dos meninos, que na maioria dos casos não dão as caras. Entre eles, o Alex foi o que mais participou do nosso trabalho. Ele foi um verdadeiro facilitador das filmagens. Até relevou desentendimentos com a Edilene para fazer a cena da conversa no almoço a dois. Já o Juninho, namorado da Luana, entra mudo e sai calado, conforme seu temperamento. Com o Sérgio, namorado da Evelin recém-saído do tráfico, fizemos um trato de não mostrar o seu rosto nem identificá-lo nominalmente. Ele temia represálias de todos os lados. Para mim, foi a realização de um desejo. Eu sempre quis ter num filme um personagem de costas, cuja identidade não fosse revelada através de um longo período. No dia do nascimento do seu filho, soubemos que o Sérgio estava voltando para o tráfico. Depois de montar e mixar o filme, aconteceu o que mais temíamos: ter de concluir MENINAS com uma nota trágica.
Gisela: “Difícil foi evitar que as mães das meninas – sobretudo as de Evelin e de Luana -assumissem o papel de protagonistas, no vácuo de expressão das filhas. Às vezes tínhamos que pedir expressamente para filmar as garotas, sem a presença delas.”
Sandra: “Como observação pessoal desse período na vida das meninas, eu acho que todas ficaram um pouco mais tristes. Algumas amadureceram, certamente. Ao fim das filmagens, até por sugestão delas, promovemos um primeiro encontro das quatro, com seus respectivos bebês e famílias. Ali percebemos, por exemplo, que Edilene já passou a aceitar melhor o filho de Joice, a ‘rival’. O que vejo nessas meninas é a eternização de um círculo vicioso, dominado pela irreflexão e pela banalização da vida. Ficar grávida, para muitas delas, é um ato corriqueiro e pouco planejado.
De qualquer maneira, o filme não foi feito para discursar sobre esse tema, nem julgar ninguém. Nós só queríamos ouvir aquelas meninas e expor o seu mundo. Daí não termos incluído qualquer texto ou narração editorializante, assim como omitimos todas as entrevistas com médicos que chegamos a gravar.”
Gisela: “Gosto de pensar MENINAS como um filme não sobre a gravidez adolescente, mas sobre quatro adolescentes que ficaram grávidas.”
Histórias entrelaçadas - A edição
Sandra: “Como a maioria dos documentários, MENINAS foi muito trabalhado na fase de edição. Antes de mais nada, montamos as histórias lineares de cada menina. O desafio, então, foi encontrar os pontos onde esses segmentos podiam se intercalar. Sempre gostei das narrativas entrelaçadas. Com Amores Possíveis aprendi que, para entrelaçar, é preciso conhecer muito bem cada um daqueles mundinhos. Eu temia que o público não conseguisse separar as três histórias, especialmente no início do filme. Depois perdi o medo. Compreendi que, ao falar dessas meninas específicas, estávamos falando também de meninas em geral. Até certo ponto, suas histórias são semelhantes e intercambiáveis.
Na edição, procurei não ampliar muito o círculo familiar das meninas. Tive que deixar de lado tias, amigos etc, para não dispersar o interesse do espectador nem perder o foco das questões. Para esse tipo de economia narrativa, usei muito o que aprendi com o Cazuza.”
Outras meninas - O próximo projeto
Sandra: “Em qualquer tipo de filme, sempre me interessei pela linguagem. Isso fazia com que, nos meus antigos documentários, eu tivesse um olho na realidade e outro na ficção. Em Pena Prisão, coloquei as detentas do Talavera Bruce para encenar seu dia-a-dia. Em Damas da Noite, escalei uma atriz para fazer um papel ficcional. Mas agora, depois de dirigir três longas de ficção, acho que me liberei daquele “complexo”. E pude fazer em MENINAS um documentário puro, relativamente clássico.
Mas a cura definitiva dessa “esquizofrenia autoral” talvez só venha com meu próximo projeto. Motivada pela experiência de MENINAS, comprei os direitos do livro As Meninas da Esquina, de Eliane Trindade, que trata de prostituição, abuso sexual e relações familiares. A autora deu um gravador a seis meninas envolvidas em exploração sexual, que registraram seus diários durante um ano. O filme vai se chamar Sexo, Crochê e Bicicleta. Pela primeira vez na minha carreira, vou conseguir juntar o trabalho de ficção com uma preocupação social que estava mais presente nos documentários.
Se eu projetar minha carreira futura, pretendo transitar com freqüência por esses dois mundos, o que é muito rico e gratificante.”
